Somos Arte

domingo, 8 de junho de 2008

Em Cena, O Amador

EM CENA, O AMADOR.

Transforma-se o amador na coisa amada.
Por virtude de muito imaginar,
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
(Luís Vas de Camões, poeta português).

Conheci, certa vez, um rapaz que realmente “delirava” com música. Era uma pessoa introspectiva e fechada, cujas opiniões poucos conheciam e cujas idéias raramente expressava em público. Mas, quando sentava-se ao piano, era como se estivesse tomado de um êxtase muito particular e especial. Toda sua timidez desaparecia e ele parecia integrar-se ao instrumento, passando a compartilhar de sua natureza.
Ele sempre demonstrava vocação para a música, com uma competência rara para interpretar e criar, tendo até composto várias peças, num ritmo que se poderia classificar como “entre o rock e o blues”. Porém jamais quis assumir profissionalmente sua vocação, trocando seu trabalho convencional, perseverante e registrado, pela atividade artística, na maioria das vezes tão duvidosa e insegura. A música ficava para os fins de semana e feriados, como acontece com inúmeros outros amadores que não puderam transformar seu talento em profissão e que, mesmo dotados de uma sensibilidade inquestionável, desistiram de fazer da arte seu meio de vida.
Meu pai, por exemplo, era um desses amadores. Tocava flauta com muito sentimento e posso garantir que, ao menos na família – seu público -, sua música era recebida até com gratidão. Conheci um senhor que, integrando um quarteto de cordas, alegrava os aniversários dos amigos e parentes, com saraus que fariam inveja a qualquer grupo profissional.


O SIGNIFICADO DA PALAVRA

“Amador” é uma palavra feliz para nos referirmos a pessoas que demonstram uma vocação especial para determinada arte e que, apesar de não praticarem de forma profissional, jamais a abandonam. Pois é, a cada geração, milhares de músicos, poetas, pintores e escultores desenvolvem seus dons apenas por amor ou paixão. Por que essas pessoas não se dedicaram a suas vocações, restringindo seus talentos a apresentações informais?
A verdade é que ninguém consegue viver sem arte, sem criar um universo de imagens e símbolos capaz de expressar seu mundo interior. A arte está presente nos mais diversos aspectos da vida e nas atividades mais cotidianas, nas quais estamos sempre buscando algum tipo de beleza. Quando escolhemos uma roupa, uma cor com a qual pintar nossa casa, uma música para acompanhar nosso pensamento, estamos levando em conta critérios estéticos.
Essa capacidade humana de emocionar os outros através da beleza e, em especial, a beleza da poesia que existe na vida cotidiana é o tema de um livro que foi transposto para o cinema 1995. Trata-se de O carteiro e o poeta. Dirigido por Michael Radford, o filme relata a convivência do poeta chileno Pablo Neruda com o carteiro que lhe levava as correspondências, durante seu exílio na Itália. Através desse contato quase diário, o poeta ensina o carteiro a entender o sentido poético da vida, capaz de ser captado por qualquer pessoa que esteja disposta a isso.


DE AMADOR A ARTISTA PROFISSIONAL

Mas, se é verdade que todos nós somos artistas, por que só alguns chegaram a fazer da arte sua profissão o seu meio de vida? Porque a profissionalização exige mais do que uma sensibilidade desenvolvida, uma vocação ou um gosto por determinada forma de expressão. Exige dedicação, exercício, estudo, aprofundamento e atualização constante. Exige comprometimento com essa atividade, sacrifício e método, e não apenas prazer.
Um dos mais importantes pintores modernos, o espanhol Pablo Picasso, disse que a arte resultava de 10% de inspiração e 90% de transpiração. Essa transpiração vem de esforço e trabalho. Músicos e pintores profissionais, assim como os esportistas, treinam horas a fio e se dedicam à sua arte por tempo integral. Isso é o que os diferenciam das demais pessoas que produzem sua arte nos fins de semana.
Mas não basta isso para se chegar à consagração. É preciso que aqueles que pretendam ser artistas se sujeitem ás regras e também ao mercado de arte, aprendendo tudo o que possam a respeito, acompanhando o desempenho dos outros profissionais, freqüentando lugares onde os artistas – profissionais e amadores – mostram sua arte e a submetem à avaliação do público e da crítica especializada.
Na verdade essa forma de profissionalização não acontece só com a arte. Em qualquer área que queiramos atuar – esporte, medicina, religião -, temos que nos submeter às regras de cada área, ou do campo, como chama o sociólogo da arte Pierre Bourdieu, e à avaliação de pessoas capazes de julgar, legitimar e divulgar nosso trabalho. A partir daí é que nosso trabalho se projeta e, no caso das artes, chega aos meios de divulgação: as editoras, as gravadoras e os meios de comunicação de massa.
Muitos salões, festivais e concursos têm exatamente a função de recrutar da grande massa de artistas amadores aqueles, pelas características e qualidade de sua arte, apresentam boas chances de profissionalização. Muitos empresários de arte percorrem o mundo atrás de talentos escondidos e alguns têm a coragem de investir nesses artistas potenciais, apresentando-os ao público e inserindo-os no mercado.
É preciso diferenciar capacidade inata que temos para a criação a apreciação artística, ou seja, nosso talento para alguma forma de expressão artística, da atividade profissional engajada que nos faz deixar de ser amadores para nos tornarmos profissionais reconhecidos. Claro que o amadorismo é uma etapa necessária de todo artista, mas a passagem de uma etapa para a outra exige comprometimento com esse fazer e profissionalismo.


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