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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Curadores da 29ª Bienal de SP debatem os rumos da mostra

04/02/2010 - 01h22



Curadores da 29ª Bienal de SP debatem os rumos da mostra



FABIO CYPRIANO
da Folha de S.Paulo



Após mais de dez horas de debates, anteontem, com toda a equipe curatorial da 29ª Bienal de São Paulo, o curador geral da mostra, Moacir dos Anjos, e a espanhola Chuz Martinez, curadora assistente da mostra, além de curadora-chefe do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, falaram por cerca de uma hora com a Folha. Leia a seguir a íntegra da entrevista:

Folha - A diretora-geral da Documenta de Kassel, Carolyn Christov-Bakargiev, disse em entrevista à Folha, que bienais são laboratórios, vocês concordam?
Chus Martínez - Durante os anos 1990, falava-se muito em laboratório de experimento, e é um termo muito usado, mas que ainda têm significado. Quando se fala de experimento, não quer dizer que não saiba o que se faz, de sorte que não se sabe e nem se queira saber o resultado exato de onde se quer chegar, mas que se joga com alguns parâmetros possíveis de controle para se estudar algo. Nesse sentido, a Bienal de São Paulo é ultraespecífica, o que significa muito, não só para as pessoas de São Paulo, como para todo o continente e o resto do mundo. É uma bienal que não possui só eventos, mas tem uma vida histórica que se repete, e de certa forma reverbera em cada uma de suas edições. É normal pensar que não é só um laboratório mas uma academia para expor, pensar e refletir como se constrói a história da arte no país, no continente latino-americano e como é a história da recepção entre os próprios países. É um lugar fundamental para estudar a produção artística, como se relaciona essa produção com sua própria história, e como sua história se relaciona com a produção de outros. Assim, é um momento fundamental de sincronização de muitas energias, maneiras de fazer, de um evento que vai muito mais além de um momento festivo, eu diria para todos, mas, sobretudo, para o continente. Nós, de fora, vemos isso com mais força, porque existe a Bienal de Veneza, a Carnegie International [nos EUA] e a Bienal de São Paulo e há poucas outras com essa história, além da Documenta, e todas refletem não o "branding" (a criação da marca) de uma cidade, como ocorreu nos anos 1990, mas uma história da vontade de uma comunidade artística em posicionar uma produção e pensá-la de forma sistemática. A cada dois anos, com isso, são criados pontos de encontro e por isso a possibilidade da Bienal de São Paulo desaparecer a foi um escândalo, já que ela representa muito mais que uma exposição.

Folha - E o que será, então, a 29ª Bienal?
Moacir dos Anjos - Há vários aspectos em que a Bienal vai exercer esse papel de pensar as questões de um modo, como Chus falou, não de uma maneira anárquica, mas de uma maneira investigativa, um laboratório tem esse aspecto de investigar aquilo que não se sabe ainda exatamente o que é, mas que ainda assim é importante buscar.

O que temos trabalhado muito nesses dias é investigar novas formas de construir formas de relação entre o público e a obra. Outra questão que norteia nossas discussões é como pensar a arte internacional a partir de um país como o Brasil, que nesse momento passa por uma situação especial na geopolítica do mundo, em conjunção com uma série de outros países que também assumem papel crucial. E não é apenas uma mudança de forças geopolíticas, mas a emergência de forças que não atuavam, o que muda a equação e fazer uma exposição no Brasil, nesse momento, tem um significado especial.

Filipe Redondo/Folha Imagem


Folha - A casa de leilão Phillips de Pury vai organizar um leilão dedicado, pela primeira vez, apenas com obras de países do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), em abril. É a essa nova cena que vocês se referem?
Dos Anjos - A definição do BRIC passa por outros fóruns que não é a da reflexão artística e nós não estamos, de forma alguma, amarrados a essa necessidade de afirmar um bloco formado por esses quatro países. Nosso papel, aliás, é desenhar outras possibilidades de associação.

Martínez - Não é uma questão desde onde, mas de que falamos. Uma vez que se saiba o que se quer falar, ficará muito claro para quem. Não se busca primeiro as pessoas para se começa a conversar, mas primeiro é preciso ter algumas preocupações e então buscar parceiros para um diálogo sobre tais assuntos. Há muitas confusões, por um lado as pessoas estão cansadas de falar do mundo globalizado e da mundialização, mas, por outro, de formas mais raras e diferentes, se volta à noção de estado-nação e nacionalidades. E creio que a arte, se tem algo, é questionar essas noções estritamente políticas de fronteiras e separar realmente as perguntas e não os passaportes.

Folha - Nesse sentido, depois de dois dias discutindo o projeto da Bienal, que perguntas vocês querem fazer?
Martínez - De forma geral, o interessante nessas reuniões é que as pessoas estão preocupadas em como se faz um projeto substantivo, em como se relaciona um projeto substantivo, que tenha significado para o momento em que se abra ao público, com a mesma história desse projeto. E, finalmente, como se reverbera o que se faz em São Paulo em outras comunidades fora da cidade. Nesse sentido, a discussão tem se focado em novas formas de falar, novas formas de investigar, novas formas de ser substantiva. Ter a coragem de, desde uma exposição, apelar a formas de investigação que vão além da arte de mostrar, mas que quer recorrer ao pensar, à escritura, à academia, à própria memória histórica. Nesse sentido é um dicionário de preocupações que não tem ainda nome e sobrenome, mas tem um itinerário sólido de que não seja apenas um evento.

Dos Anjos - Resumindo, uma questão fundamental que se quer fazer é qual a relevância de organizar a Bienal de São Paulo, hoje. Não é simplesmente organizar uma mostra, mas é algo além disso: criar uma forma de entendimento do mundo, uma forma de geração de conhecimento e afirmar a necessidade da arte para pensar o mundo. Essa é a ambição.

Martínez - É aproximar o público, qualquer que seja sua filiação, de moradores de rua a envolvidos na academia, familiarizando-os com os modos e métodos de trabalho dos artistas. Os artistas não apenas proporcionam uma imagem ou um resultado final, eles são agentes duplos, eles são dos poucos personagens que habitam muitos mundos e por conta dessa capacidade, eles são os melhores investigadores.

Folha - Essa preocupação parece muito pedagógica, em aproximar a arte das pessoas, o que poderia parecer contraditório ao papel que vocês apontam para a Bienal que é fortalecer o meio artístico...
Martínez - Ao contrário, não precisamos aproximar a arte das pessoas, ela já está ai. Estamos em muitas crises, mas não nessa. Existe um entendimento tácito, não falado, não é preciso levar a arte às pessoas, a Bienal é um lugar de relações e a arte se ocupa de se aproximar das pessoas, não é preciso uma terceira mão que empurre, as próprias obras se aproximam. Mesmo na Espanha onde questiona a relação entre público e arte contemporânea, o museu [Macba] ganha visitantes o tempo todo e nós temos um dos programas mais duros e conceituais da Espanha e mesmo assim ganhamos gente. Há uma aproximação da obra, as pessoas pensam, o espectador é corresponsável no mundo em que vive. Nós não somos um "delivery service" (serviço de remessa).

Dos Anjos - Há duas coisas aí. A Bienal de São Paulo é profundamente exitosa, porque talvez seja a exposição mais visitada do planeta, com a exceção da última edição que é um caso à parte. Há uma participação intensa do público. Por outra lado, é preciso distinguir o projeto educativo, que é uma preocupação institucional, em potencializar essa exposição, a dar acesso ao máximo de participação do universo escolar, num país onde estudantes não têm acesso aos museus como a Bienal. Isso tudo não se confunde com o poder que a arte tem de comunicar, de falar da vida das pessoas, de criar uma forma de conhecimento que não se reduz a nenhuma outra forma.

Martínez - É preciso por na mesa que a arte, além de ter um componente estético, sempre é uma produção que pensa, que pensa através dos sentidos. E ao pensar através dos sentidos dos sentidos se produz um conhecimento que, atualmente, é fundamental para entender o mundo. E é ai que entra o público, porque em um mundo tão complexo, a complexidade da arte em lugar de ser um problema é onde as pessoas se sentem mais cômodas. O entusiasmo que se percebe no público da Bienal de São Paulo, e de qualquer tipo de público, é o entusiasmo de encontrar-se com uma realidade que não se parece e não mimetiza a sua própria e lhe dá capacidade de liberdade e pensamento que não existe no dia a dia.

Dos Anjos - Quando dizemos que estamos interessados na relação entre espectador e obra é porque a arte, o tempo todo, propõe novas formas de relação com o mundo e estamos interessados nessa relação produtiva, que gera conhecimento quando o público se depara com essas formas que não mimetizam o dia a dia. Nesse sentido que a arte é política.

Folha - Como vocês vão repensar o pavilhão da Bienal?
Martínez - Dentro do pavilhão nós vamos criar outros seis pavilhões, a ser projetados por arquitetos e artistas, o que irá representar momentos de suspensão na mostra, onde será possível ver vídeos, performances, encontrar pessoas, para assim alterar o ritmo da visita. Interessa-nos muito criar formas distintas para a compreensão da mostra. Será como uma pele dentro de outra pele. Vão ser pausas produtivas.

Folha - Vocês têm essa reunião agora e...
Dos Anjos - Novamente em maio, quando, creio, vamos ter uma clareza muito maior, inclusive em termos físicos, porque falamos fisicamente da Bienal, mas em termos abstratos, pois não temos a lista final dos artistas nem a lista de obras. Discutimos mais em termos de atmosfera, no sentido geral da exposição, mas é impossível saber com ela será concretamente, agora.

Folha - E com tantos curadores, como a mostra deve ser organizar, vão existir curadorias específicas?
Dos Anjos - Não, a ideia é ter uma só exposição e não várias, nós somos um time. Por isso é tão prazeroso, mas ao mesmo tempo tão cansativo. Têm sido muito interessante as discussões, pois questões emergem e amadurecem, algumas são descartadas e outras adicionadas, até que exista uma plataforma partilhada de ideias e intenções que possam dar uma cara integrada à exposição.

Folha - Até onde chegaram as discussões, o que se pode esperar da 29ª Bienal?
Martínez - É uma equipe que está tentando com muitas ambições que superam um passeio do que sucede na arte contemporânea, será algo além disso. Queremos convidar o espectador a participar de um panorama de perguntas que, creio que lhe vai interessar, porque têm a ver em como se educa o indivíduo contemporâneo, que posição tem o sujeito dentro do sistema de liberdade e coação, quais a relações possíveis entre os mil mundos que vivemos, desde o mundo cotidiano até o mundo que chega pela televisão, em todos os tipos de plano. Será um intento de engrandecer a experiência do espectador, de criar uma viagem mental que seja agradável. Será uma Bienal que terá muitas velocidades: quem quiser ver rápido poderá ver rápido, mas terá também muitas ferramentas para poder pensar mais.



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