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sábado, 21 de agosto de 2010

Leia trecho da biografia premiada inédita de Van Gogh

03/01/2010 - 19h06

da Folha Online



Capa da edição francesa da biografia do pintor holandês

A biografia de Van Gogh assinada por David Haziot, obra vencedora do Prêmio da Academia Francesa em 2008, chegará ao Brasil no começo de 2010, editado pela L&PM Pocket.

Filósofo de formação, escritor, David Haziot publicou em 2000 o romance, "Le Vin de la Liberte" (Robert Laffont, prêmio do romance histórico e prêmio da Academia do vinho de Bordeaux), o romance-conto em 2002 sobre o fim do matriarcado no neolítico, "Elles". Também é autor de "L'Or du temps", um romance-quadrinhos poético, de três volumes, inspirado no mito de Orfeu, com o desenhista François Baranger. Editou e prefaciou três volumes das "Vidas de Plutarco". Obras ainda inéditas no Brasil.

Leia abaixo um trecho dessa biografia inédita de Vincent Van Gogh, que foi um dos gênios mais negligenciados em vida na história da arte.

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Um túmulo acusador?

Desde o seu nascimento, Vincent Willem Van Gogh viveu em dificuldade. Nasceu em 30 de março de 1853, exatamente um ano após uma criança natimorta chamada, como ele, Vincent Willen Van Gogh.

O túmulo desse primeiro Vincent se achava a poucos passos da igreja onde o pai oficiava como pastor de Groot Zundert, pequena aldeia rural de uma centena de habitantes no sul da Holanda. Assim, tão logo aprendeu a ler, o pequeno Vincent pôde ver seu nome como no seu próprio túmulo. Ele seria um eterno substituto.

Para os psicólogos e psiquiatras, essa situação cria na criança uma grande culpa em relação ao desaparecido, pois o sentimento de ter provocado essa morte por ter nascido, por existir, se impõe no núcleo de sua personalidade. Para justificar sua existência, a nova criança deve dilatar seu ego ao infinito realizando prodígios ou contentar-se em ser nada e desaparecer, se não tiver energia bastante. Além do mais, quem era esse morto que tinha o seu nome? Rivalizar com um irmão ou uma irmã já é difícil; mas com um morto? um desconhecido do qual tudo se pode supor, cujo ser se abre como um abismo de maravilhas no imaginário? O que fazer para merecer estar vivo? A existência de Van Gogh teria se apresentado como uma dívida a pagar.

Um outro pintor teve de enfrentar bem mais tarde uma situação análoga: Salvador Dalí foi precedido de um outro defunto Salvador Dalí amado pelos pais. O pintor teria reagido por um desapego absoluto e humorístico de si, perpetuamente votado ao fracasso e sempre a recomeçar.

Vários argumentos tendem a moderar essas explicações.

Em primeiro lugar, a mortalidade infantil, na metade do século XIX, ainda fazia que uma situação como a de Van Gogh ocorresse com frequência, e era de tradição dar o nome do filho falecido ao que vinha ao mundo depois dele. O enraizamento cultural dessa prática retira-lhe o caráter excepcional ou mesmo assustador que pode ter aos nossos olhos. Além disso, é preciso saber que na família de Van Gogh o avô de Vincent se chamava Vincent Van Gogh, e que um irmão do seu pay, rice comerciante de obras de arte, também se chamava Vincent Willem Van Gogh! E houve dois outros Vincent mais antigos, dos quais o pintor teve certamente conhecimento nessa família que conserva registros há séculos e conta com vários pastores. Outros tios do pintor receberam, como segundo prenome, às vezes Vincent, às vezes Willem... É algo que dilui o impacto do túmulo homônimo, sem reduzir completamente o seu poder.

Como esse tio rico Vincent Willem não tinha filhos, é provável que os prenomes do nosso Vincent (e do irmão natimorto) foram dados em sua honra como para solicitar-lhe o apadrinhamento, o que Vincent obteve até um certo ponto. Por fim, convém voltar às observações limitativas de Freud a propósito de Leonardo da Vinci: numa situação psicológica idêntica à dele, um outro indivíduo teria certamente sido o inverso de Leonardo. Nem todas as crianças nascidas após um irmão morto e de mesmo nome se tornaram, longe disso, artistas como Van Gogh e Dalí. Resta um mistério cuja elucidação possível Freud remete ao substrato biológico da pessoa.

Mas, a nosso ver, o mistério permanece irredutível, pois uma personalidade é o resultado de uma tal complexidade e quase infinidade de forças, grande ou pequenas, agindo em todos os sentidos, mas todas eficientes, que é impossível dizer o que o indivíduo fará em cada etapa do seu desenvolvimento. Sua marcha é tão "caótica" como a dos planetas dos quais não se pode mais dizer com certeza onde estarão para além de um horizonte preditivo que se calcula; o aleatório torna-se assim o fundo da existência do sujeito. Em outras palavras, diremos que Van Gogh era livre para ser ou não ser o que ele foi.

A presença sepulcral de um irmão morto do qual ele tinha o nome foi uma das forças atuantes na sua vida entre uma série de outras, que em sua maior parte desconhecemos. Um siblime aspecto de luz durante um passeio no campo holandês pode ter sido tão determinante quanto essa questão. É o que sabe toda pessoa confrontada à criação artística. Pois a obra de Van Gogh nem sempre é triste ou trágica. Ela respira às vezes uma incomparável felicidade de existir. Uma biografia, portanto, deve apresentar com humildade alguns referenciais sobre um fundo de ignorância, mas sem mitos, se não para atingir uma transparência impossível do artista, pelo menos para amá-lo e apreciar suas obras com mais profundidade, respeitando sua liberdade ou aquele "inarredável núcleo de noite" em cada um de nós, de que falava André Breton.

Vocês são realmente excepcionais! A gente que lida com arte que passamos por diversos tipos de exposições, o resultado do que eu falo ou faço é proporcional a participação de vocês.
Alexandre Fester.


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