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segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Jane McAdam Freud dá adeus a seu pai

27/01/2012 - 19h26

Jane McAdam Freud dá adeus a seu pai


SIMON HATTENSTONE
DO "GUARDIAN"

Jane McAdam Freud olha fixamente para uma escultura de seu pai, Lucian Freud. Vista desde um lado, ele está morto: olhos e boca fechados, sereno. Visto pelo outro lado, está extremamente desperto: olhar intenso, boca concentrada, rosto animado. E, visto desde a frente, ele parece feroz.

Lucian foi modelo da escultura enquanto estava de cama, morrendo. Jane descreve a escultura como um tríptico. É um trabalho belo: brincalhão, comovente, estranho.

Joel Ryan/Associated Press















A artista Jane McAdam Freud encara a escultura de sua autoria

Lucian posou para sua filha pela primeira vez em 1991. Naquela época, ela fazia esculturas dele e ele fazia esculturas dela, e eles passavam o tempo todo pisando sobre ovos um em torno do outro --acabavam de se reaproximar. Desta vez, foi diferente. Jane estava no controle. Ela começou esses trabalhos como uma maneira de fazer a crônica da vida de seu pai.

Eles se converteram em um ato de recordação dele, mas Jane nunca tinha pensado em fazer uma mostra dos trabalhos até que Jon Snow, do canal de televisão Channel 4, os viu e lhe disse que seria egoísmo impedir o público de vê-los. De qualquer maneira, seu pai tinha dito que as obras acabariam sendo expostas. "Ele falou: 'Jane, já vi seu trabalho. É bom, e todo trabalho bom acaba vindo a público.' Ele vivia me fazendo esses elogios indiretos."

A mostra que vai começar no Museu Freud, em Londres (o museu deve seu nome ao tataravô de Jane, Sigmund Freud), consiste em retratos feitos em materiais diversos: desde desenhos íntimos até moedas de cobre gravadas, desde impressões em massinha de modelar até aquele gigantesco tríptico de terracota refletido em um espelho.

Jane pede que eu olhe para a parte de trás de cada um dos pequenos retratos de cobre. "O que você viu?", pergunta. Acabo decifrando a palavra "earth" (terra). "E o que você viu dentro de earth?". Olho fixamente mais um pouco e então grito, triunfal: "art!" (arte). Jane ri, alegre. "Exatamente. Eu quis colocar sobre o quê era a vida de Lucian, qual era o centro de seu mundo."

"COISINHA PEQUENA"

Jane vive em uma casa de aparência modesta na zona noroeste de Londres, com seu marido e dois filhos adultos (do casamento anterior do marido). O interior da casa se abre em algo surpreendentemente espaçoso, com um enorme ateliê nos fundos do jardim. Há algo nela que faz com que gostemos imediatamente dela: Jane é calorosa e falante, divertida e vulnerável, confusa e tolinha --ela daria uma ótima personagem de Mike Leigh.

Como seu pai, também há algo nela que lembra uma ave de rapina: rosto que lembra um bico, olhos atentos de falcão. Sobre sua mesa há uma frase do reformador educacional americano Horace Mann: "Tenha vergonha de morrer antes de ter conquistado alguma vitória para a humanidade". Jane sorri. "Não precisa ser uma vitória grande", pondera. "Basta uma coisinha pequena."

Kirsty Wigglesworth/AP














Lucian Freud retratou o artista Francis Bacon




Desde que Lucian morreu, ela dedica seu trabalho a ele, em grande medida como maneira de explorar o relacionamento que teve com ele. E foi um relacionamento espantoso.

Até Jane ter 8 anos de idade, Lucian, que se sabe ter sido pai de pelo menos 14 filhos, foi uma parte importantíssima de sua vida. Jane é uma dos quatro filhos de Lucian Freud e Katherine McAdam, que se conheceram no Central Saint Martins College of Art.

O início do relacionamento deles foi classicamente freudiano: Katherine tinha vencido um concurso que escolhia a aluna mais bonita da faculdade londrina; Lucian achou que tinha o direito de dançar com ela. Eles nunca se casaram, mas a relação deles foi o que o grande retratista teve que mais se aproximou de um relacionamento tradicional.

Auto-retrato do artista Lucian Freud, obra de 1985 que está exposta na National Portrait Gallery, em Londres

Katherine e os quatro filhos deles tinham uma casa em Paddington, e Lucian vivia nas proximidades. Ele estava sempre por perto; quando não estava, as crianças pensavam que ele estivesse em seu ateliê. Para a pequena Jane, tudo parecia estar ótimo. Seus pais nunca discutiam, ela conta, mas, perto do final do relacionamento deles, ficou evidente que algo não estava indo bem.

"Havia dias em que Mamãe não o deixava entrar em casa. Eu me lembro de meu pai perguntar 'por que sua mãe não me deixa entrar?' Ela estava tentando distanciar-se dele, seguir adiante com sua própria vida."

Reuters

Auto-retrato do artista Lucian Freud, obra de 1985 que está exposta na National Portrait Gallery, em Londres
Katherine, ela própria artista de talento, forjou uma carreira como designer. Um dia, sem qualquer aviso prévio, ela fez as malas e, com as crianças, se mudou para Roehampton, na zona sudoeste de Londres. Jane só voltou a ver seu pai quando tinha 31 anos.

"Vinte e três anos!" exclamo. Ela parece espantada. "Tudo isso?" Conta os anos: 31 menos oito. "Sim, foram 23 anos." Sua mãe tirou o "Freud" do sobrenome familiar e recomendou a seus filhos reconstruírem suas vidas. "Quando nos mudamos, eu gritei e esperneei. Fiquei absolutamente arrasada porque me estavam levando embora." Mas pouco a pouco ela foi descobrindo como seu pai tinha sido e a razão de sua mãe ter tomado uma medida tão drástica.

"Me recordo de ter conversado com minha mãe sobre isso, sobre essas coisas complicadas, e ela deixava tudo muito claro. Ela dizia 'ele é muito intenso, Jane'. Dizia: 'Eu não poderia viver com ele em tempo integral, porque não me sobraria energia. Ele é intenso demais'."

E havia os casos extraconjugais de Lucian. Para a mãe de Jane, o relacionamento era monogâmico e puro; para Lucian, era tudo menos isso. "Minha mãe simplesmente não suportou mais. Talvez tenham sido as traições, as outras mulheres, os outros filhos."

NEGAÇÃO

Durante muitos anos ela foi conhecida como Jane McAdam. É simples, ela diz: ela estava em negação em relação à sua parte Freud. Como Jane McAdam, ela descobriu a arte, estudou no St. Martins, depois no Royal College of Art, obteve um mestrado e bolsas de estudo em todo o mundo. Jane, que hoje tem 53 anos, soube que queria ser artista plástica quando tinha 3 anos de idade, quando primeiro brincou com água num tanque de areia e descobriu a escultura. Não que ela soubesse que tinha esse nome.

Para sua mãe, o sobrenome Freud era uma pedra no pescoço: não tanto Lucian, que ainda era um pintor que passava por dificuldades quando eles se separaram, mas Sigmund. Katherine queria que seus filhos vivessem suas vidas em seus próprios termos. À medida que Jane foi tendo sucesso profissional, ela se convenceu de que não precisava de mais nada. "Eu estava ocupada fazendo meu trabalho e tendo sucesso por mim mesma. Não precisava de nada além disso. Eu estava totalmente motivada e apaixonada pela arte."

Então ela não pensou em seu pai ao longo daqueles anos todos? Jane me dá um daqueles olhares freudianos intensos. "Bem, eu lia sobre ele na imprensa, cada vez mais. Eu estava em estado de confusão." Por quê? "Bem, aquele era meu pai, e ninguém sabia. Imagine viver assim: era uma tortura."

Por que ela queria que as pessoas soubessem? "Eu não queria, mas queria que fosse eu. Queria sentir mais a fundo quem eu era. Eu quis reatar meu relacionamento com ele." O que ela sentia? "Anseios difusos", ela responde. Ela tecia fantasias sobre o reencontro; sentia-se incompleta, desonesta, confusa.

Lucian não fez nenhuma tentativa de entrar em contato com seus quatro filhos por meio de Katherine. E os filhos tampouco tentaram entrar em contato com ele; Jane diz que morria de medo de ser rejeitada.

MACULADA

Em 1991 Jane recebeu o título de cidadã honorária de Londres, em reconhecimento por seu trabalho. Para receber o prêmio ela precisou apresentar sua certidão de nascimento, na qual constavam não apenas seu nome completo, mas também o nome e ocupação de seu pai. "Falaram: 'Descobrimos você!'."

A atenção da mídia que isso suscitou mostrou ter seus prós e contras. Fato estranho, Jane começou a ter mais dificuldade em conseguir mostras e pedidos de trabalhos; pessoas que antes adoravam seu trabalho começaram a duvidar dela, pensando que ela fosse de alguma maneira maculada por seu pai ou dependente dele. Sob outro aspecto, contudo, a atenção foi bem-vinda: Jane abraçou sua nova identidade --e redescobriu seu pai.

Eles marcaram um encontro para jantar. Jane estava apavorada, não conseguiu comer. Lucian simplesmente olhava fixamente para ela. Ela o amava, o respeitava tremendamente, mas entendeu imediatamente o que sua mãe quis dizer quando falou da intensidade dele.

"A intensidade é uma coisa fantástica, emocionante, mas você acaba ficando exausta." De que maneira Lucian era exaustivo --falava muito, era exigente? Não, diz ela --eram os olhos dele, seu olhar. "Aquilo afogava cada centímetro de mim. Eu ficava dominada por aquele olhar e me perdia naquele olhar, que mudava constantemente. Devido aos longos silêncios entre as palavras dele, você sentia que estava esperando. Esperando." Quando foi que ela primeiro tomou consciência desse olhar? "Sempre! Afinal, meus namorados sempre foram reencarnações disso."

Após aquele primeiro encontro, Jane pediu a Lucian que posasse para ela, e isso levou a um ano durante o qual um esculpiu o outro. Ela sentia raiva por ele a ter abandonado? "Não. Sou uma sonhadora, um pouco. E otimista. Philip Pullman disse que temos a responsabilidade moral de sermos positivos em mais que 50%, e acho isso verdade." Ela sabe como Lucian se sentia sobre a ausência? "Ele falou apenas que não tinha vida familiar." Ela sorri. Nós dois estamos pensando nos 14 filhos. "É um enigma, não?"

Jane diz que o engraçado é que ela acha que Lucian teria adorado fixar-se com uma só mulher. "Acho que ele era muito vulnerável." De que maneira? "Ele não gostava de se despedir. É difícil quando você está com uma pessoa e ela realmente não quer que você vá embora. Eu sentia isso muito, especialmente mais perto do final. É por isso que você se sentia tão importante quando estava com ele. Acho que as pessoas o amavam porque ele genuinamente precisava das pessoas." Ela se interrompe. "Mas você muda, não é? Um instante você precisa das pessoas, e no instante seguinte, não."

ABRAÇAR A REALIDADE

Justin Tallis/France Presse
Mulher observa medalha de bronze com rosto de Lucian Freud
Estamos olhando para o tríptico enquanto conversamos. "Há um quê quase reptiliano", diz ela. "É como uma naja. Alguma coisa que solta sua pele. Não dá para defini-lo." Jane diz que o que gosta na escultura é que um olho está aberto e o outro está fechado, como Lucian ficava quando estava pintando.

O fato de ter retomado o contato com ele mudou praticamente tudo na vida de Jane; no mínimo, ela se descobriu com dez meios-irmãos. O reencontro teve um efeito dramático sobre os irmãos de Jane: os três mudaram de rumo profissional, anunciando que agora seriam artistas. Jane tem orgulho do que eles fizeram, mas acredita que ela é a melhor entre eles. "São necessárias milhares de horas para entender quem você é, o que está fazendo e de que trata seu trabalho."

Jane comenta que eram estranhas as coisas que ela e seu pai tinham em comum: o olhar fixo, o modo como cerravam os punhos, especialmente quando caminhavam. E como artistas? Ela reflete sobre a pergunta e se recorda de que, quando perguntavam a Lucian que relação seus retratos guardavam com seus temas, dizia: "São eles". Jane compartilha esse desejo de abraçar a realidade.

Em 2001 ela recebeu uma encomenda: criar um retrato na forma de uma medalha. "Perguntei: 'Posso fazer de você?' Ele disse: 'Vão pensar que sou vaidoso. Seria melhor fazer isso mais tarde, quando fizer sentido, como homenagem a um morto'. Eu pensei: "O importante aqui não é você, sou eu, somos nós e o fato de estarmos formando um vínculo'." Mas em 2011, quando Lucian estava morrendo, ele finalmente concordou. Enquanto os dois estavam sentados, eles falavam sobre suas vidas passadas e presentes, juntos e separados.

Jane tira sua caixa de tesouros e me mostra o conteúdo dela: um recorte de jornal de sua mãe quando era estudante (ela se entristece porque nunca se deu conta de quão especial era sua mãe); de seus avós (o filho de Sigmund e sua mulher); cartas de seu pai, em sua letra incrivelmente infantil. Ela guarda tudo outra vez, com carinho e falta de jeito. Então fala que quer me mostrar algo particularmente especial: fotos de Lucian feitas apenas dias antes de sua morte, emaciado, barbado, com aparência de Cristo, não muito diferente da máscara mortuária de Turner.

Faltavam apenas meses para sua morte, em julho passado, quando Jane começou a trabalhar, reproduzindo imagens de seu pai em inúmeros formatos. Ela fica feliz por ter convertido tudo isso numa mostra, mas insiste que isso nunca fez parte do plano.

"Eu não pensava em expor, não em um milhão de anos. Era um trabalho particular, parte do processo de luto." Sim, ela sente orgulho do conjunto, mas sabe que foi um mecanismo para enfrentar sua dor; quando Lucian morreu, ela se sentiu como se uma grande árvore tivesse sido derrubada. "Fiz o trabalho para ajudar a mim mesma", diz Jane.

Tradução de CLARA ALLAIN


Fonte; Folha de São Paulo


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