Somos Arte

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Exposição retrata encantamento de Le Corbusier em viagem pela América do Sul


26/08/2012 - 06h00

Exposição retrata encantamento de Le Corbusier em viagem pela América do Sul


SILAS MARTÍ
DE SÃO PAULO
Na madrugada de 17 de novembro de 1929, Charles-Edouard Jeanneret desembarcou do Giulio Cesare em Santos, debaixo de chuva pesada. A vida "al mare" tinha sido doce com ele, que teve um romance com a diva negra Josephine Baker, em turnê pela América do Sul.
Naquela sua primeira viagem ao continente, Jeanneret já era Le Corbusier, como se tornou conhecido. Ou seja: já era o pai da arquitetura moderna. Mas o horizonte desimpedido das terras sul-americanas transformou seu pensamento de modo decisivo. Na onda antropofágica que varria o Brasil do final dos anos 1920, Corbu também foi deglutido, devorado e digerido.
Vindo de Buenos Aires e Montevidéu, onde exaltou em conferências os princípios do modernismo na arquitetura -- plantas livres, fachadas de vidro, construções suspensas --, o arquiteto andou de avião pela primeira vez na América do Sul. Os voos no monomotor Latécoère, a no máximo 180 km/h, adoçaram a rigidez de seus ângulos retos com os contornos da paisagem selvagem.
"Estamos em pleno verão tropical, o sol é magnífico", apontou em suas notas de viagem, mais adiante reunidas em "Precisões" (Cosac Naify). "A Argentina é verde, plana e seu destino é violento. São Paulo está a 800 m de altura, em planaltos acidentados, cuja terra é avermelhada como brasa. Vermelho e rosa são as terras do Rio, verde sua vegetação, azul seu mar. Uma luminosidade imensa faz o coração bater mais depressa."

Fondation Le Corbusier/Divulgação
Plano de Le Corbusier para a cidade do Rio de Janeiro, em 1929
Plano de Le Corbusier para a cidade do Rio de Janeiro, em 1929


Em São Paulo, seu coração batia ainda mais depressa por Josephine. Após vê-la cantar num "espetáculo idiota de variedades", escreveu que sua interpretação de "Baby" tinha "sensibilidade tão intensa e dramática que as lágrimas invadiram minhas pálpebras". Na descrição de Manuel Bandeira, que acompanhou a passagem dos dois pelo Rio, Josephine seria mesmo tudo isso, a "mestiça bastante arianizada, a própria alma negra".
No Rio, outra mulata, Jandira, tirou o sono do arquiteto. "Isso quebra o racionalismo radical dele, que nasceu na Suíça, um país calvinista onde tudo é reto, puro", diz o crítico de arte Ronaldo Brito. "Era um cara branco, fazia tudo branco, e aqui se interessa por negras. A primeira coisa que o perturba é a luz brasileira, depois essa coisa livre, cidades deslumbrantes. Ele fica muito tomado pela situação brasileira, seduzido."

DOCILIDADE
"Ele tem essas ideias quando percebe a escala do território", diz Hugo Segawa, professor de arquitetura da USP, organizador da mostra com os projetos urbanísticos de Corbu para Buenos Aires, Montevidéu, São Paulo e Rio, em cartaz até 21 de outubro no Centro Universitário Maria Antonia, na capital paulista.
"Viu que São Paulo era um mar de morros, então contrapôs sua geometria, seu cartesianismo, à docilidade da paisagem."
Le Corbusier era mais conhecido pelas teorias inovadoras do que pelos projetos construídos. O escritor Mário de Andrade saudou sua chegada a São Paulo lamentando que só lhe tenham pedido "palavras, palavras, palavras".
O arquiteto, no entanto, viajou à América seduzido pelos potencias negócios numa terra em que tudo estava para ser feito. "Ele queria vender seus projetos", afirma Carlos Augusto Calil, professor da USP e secretário municipal da Cultura de São Paulo. "Queria fazer negócio, não estava aqui por vaidade artística, não dava ponto sem nó." De fato, tentou emplacar construções, apresentou-as a autoridades e calculou custos e rendimentos.
O poeta Blaise Cendrars, outro estrangeiro ilustre que conheceu o país na companhia de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, já o alertara sobre planos do governo brasileiro de construir uma nova capital, Planaltina. Antes de deixar Paris, o arquiteto já delirava com a tal cidade do futuro em sua correspondência com o aristocrata do café Paulo Prado.
Na mostra do Maria Antonia, a poucas quadras da antiga mansão de Paulo Prado, em Higienópolis, onde Corbu se hospedou, os projetos sul-americanos mais parecem fantasias, com megaviadutos de pistas expressas a 100 m de altura e moradias em forma de cubo.
Nenhum desenho seria possível sem sobrevoar as cidades. "A bordo do avião peguei meu bloco de desenhos e desenhei à medida que tudo se tornava claro para mim. Exprimi ideias de urbanismo moderno", escreveu Le Corbusier.

SP
Para São Paulo, Corbu propôs dois viadutos de 45 km cada um, que se cruzam no centro, mas vencem os vales da cidade. Acoplados aos pilares estariam moradias e escritórios. "Existe algo mais elegante do que a linha pura de um viaduto em um lugar movimentado e algo mais variado do que suas fundações que se enterram nos vales ao encontro dos solos? Que magnífico aspecto terá esse lugar! Existirá luz e ar em profusão", escreveu, nada profético.
O desenho que talvez conserve maior atualidade foi traçado para o Rio: um sistema de elevados que serpenteiam por entre morros e enseadas, as primeiras curvas em grande escala na obra do arquiteto que chegou a fazer um poema em homenagem ao ângulo reto.
Jamais executado, o desenho repercutiu na obra de seus seguidores, que devoraram Le Corbusier por intermédio de Lucio Costa. Construções em terrenos ganhados do mar, como o aterro do Flamengo, ou até o conjunto residencial Pedregulho, de Affonso Eduardo Reidy, são como frações do conjunto proposto por Corbu em 1929, coroado pelo palácio Capanema, projeto que ele orientou sete anos mais tarde, para abrigar o Ministério da Educação e Saúde.
"Esses são esboços de uma ideia fundamental, não são projetos para serem seguidos, é um tipo de reflexão em que prevalece a natureza sobre qualquer ideia de cultura", diz o arquiteto Paulo Mendes da Rocha sobre os planos de Corbu para o Rio. "Prevalece aquilo que é inexorável, a morfologia do lugar."

MORROS
Le Corbusier também absorveu a gambiarra dos morros cariocas, cujas palafitas e casas abertas à paisagem ele equipara a seu discurso sobre construções suspensas. Na escalada dos morros "onde os negros dependuram suas casas de madeira e taipa, pintadas com cores vistosas", constatou que "o negro tem sua casa sempre a pique, sustentada por pilotis na parte da frente". "Do alto das favelas sempre se contempla o mar, as enseadas, os portos, as ilhas, o oceano, as montanhas, os estuários", escreveu. "O negro vê tudo isto; o vento reina, útil sob os trópicos."
Décadas depois, deságua na apologia à ginga e à estética da favela na obra de Hélio Oiticica, que viu no caos espontâneo dos morros a dissolução de um rigor construtivo que então perdia seu encanto sobre a superfície bidimensional dos quadros. Mas mesmo lá atrás, nos tempos de Di Cavalcanti, que levou o arquiteto aos morros e lhe apresentou a mulata Jandira, Corbu serviu de inspiração para o "cubismo edulcorado", nas palavras de Ronaldo Brito, de Portinari e do próprio Di.
Em 1945, o poeta João Cabral de Melo Neto publicaria "O Engenheiro", marco da passagem do surrealismo à contenção formal que deve muito à pureza exacerbada da obra de Le Corbusier. "Para o João Cabral, isso deu no purismo, no ângulo reto, na contenção formal. Ele tenta fazer na poesia o que Le Corbusier fez na arquitetura", diz o poeta Eucanaã Ferraz, autor de uma tese de doutorado sobre conexões entre poesia e arquitetura.
A máxima de Corbu de que a arquitetura seria uma "máquina de comover", uma exaltação da limpidez sem ornatos, aparece tanto na epígrafe do livro de João Cabral como em "A Escrava que Não É Isaura", que Mario de Andrade leu na Semana de 22. "Ele detonou no Mário um desejo discursivo, o alto volume desse discurso, a volúpia, a alta temperatura", diz Ferraz.
No Rio, ele empolgou Bandeira, que, apesar de achar que seu francês "não é bonito, a dicção é penosa, o vocabulário impreciso, a exposição difícil", escreveu dois textos empolgados sobre suas palestras no Rio, incluídos em "Crônicas Inéditas" (Cosac Naify).
Corbu passou 16 dias em São Paulo e, embora a experiência carioca esteja entre as mais fecundas de sua trajetória, só quatro no Rio. No retorno, escreve a Paulo Prado sobre uma lembrança que ficou, mais potente do que a arquitetura.
"Despedi-me do continente, num hotel em Copacabana, com uma tarde inteira de carícias com Jandira, a mulata cujo corpo é belo, puro, delicado, perfeito e jovem. Veja o milagre: o imaginário de Corbu encarna toda a América no corpo perfeito e puro de uma cozinheira."


Link para essa postagem


Nenhum comentário:

trabalhos